domingo, 14 de outubro de 2012

“Para cada policial morto, dez bandidos vão morrer”


“Para cada policial morto, dez bandidos vão morrer”, bradou em novembro de 1968 o investigador Astorige Correia, o Correinha, durante o enterro de Davi Parré, investigador morto por um traficante da zona norte de São Paulo conhecido como Saponga. O juramento antecipava a série de assassinatos praticada por policiais civis do famigerado esquadrão da morte liderado pelo delegado Sérgio Paranhos Fleury.
Na semana passada, a fatídica sentença voltou a assombrar o cotidiano dos paulistas como se as 130 mil mortes ocorridas em 52 anos tivessem sido insuficientes para dar lições. O homicídio de policiais militares na Baixada Santista e em Taboão da Serra provocou uma sequência de 20 homicídios nos bairros vizinhos. Moradores que viram o massacre apontaram PMs à paisana como suspeitos.
Em dois momentos distantes, separados por mais de meio século, a vingança continua fazendo a engrenagem dos homicídios girar. Para compreender a violência nos dias de hoje, é fundamental entender a variação dos homicídios nos últimos 52 anos.
A epidemia dos assassinatos começa no fim dos anos 1960, quando as mortes a bala se tornaram uma forma de manter o controle dos roubos, em uma cidade que crescia desordenadamente.
Antes disso, o mundo do crime em São Paulo era quase romântico, palco dos desviantes que vagavam na Boca do Lixo perto da Estação da Luz e da velha rodoviária do centro. No chamado Quadrilátero do Pecado, região da Avenida Duque de Caxias que se transformaria na cracolândia, em vez de revólveres, os malandros usavam navalhas em noitadas abastecidas por anfetaminas e destilados.
Mais que um reduto de criminosos violentos, o submundo paulistano era palco de contravenções e contraventores que vendiam sexo, jogos de azar e drogas leves. Assassinatos, nesse tempo, eram a opção dos vilões, malvados e loucos. “Os tempos eram outros. O crime que mais assustava era o furto qualificado, quando o ladrão invadia uma loja ou uma casa quando o dono estava fora”, lembra o criminalista Roberto Von Hyde, de 82 anos, que defendeu criminosos perseguidos pelo esquadrão, além de João Acácio Pereira da Costa, o Bandido da Luz Vermelha, preso em 1967 por assaltar casas e matar quatro pessoas.
“Crimes de sangue” envolviam geralmente histórias de maridos traídos, que, movidos pelo ódio, muitas vezes matavam a si próprios em tragédias passionais à la Nelson Rodrigues. Entre 1960 e 1965, em mais da metade dos assassinatos em São Paulo, corpos de vítimas foram achados dentro de casa, revelando forte associação entre esse tipo de crime e paixões domésticas mal resolvidas.
Por cometerem ações tresloucadas, os assassinos sofriam controle acirrado de instituições e da sociedade. Casos como o de Benedito Moreira de Carvalho, que ficou conhecido como o Monstro de Guaianases ao ser acusado de violentar e matar dez mulheres entre 1950 e 1953, tornavam o homicida um pária, odiado e caçado como personagem de filme de terror.
Mudança
A epidemia de assassinatos em São Paulo começou quando homicídios passaram a ser vistos como ferramenta para limpar a sociedade dos bandidos. Com o crescimento dos roubos e dos assaltos a banco no fim dos anos 1960, viraram instrumento de extermínio ou vingança para ser usado em benefício da população com medo.
Em vez de monstros, os homicidas que alegavam agir em defesa da sociedade e tornar a cidade mais segura se transformaram em heróis. Os chamados “presuntos” eram desovados em estradas, depois de serem retirados de presídios como o Tiradentes.
Chefe do esquadrão da morte, o delegado Fleury – que começou em 1968 a matar suspeitos, com ajuda de outros membros do bando – virou um ídolo, recebendo homenagens em letras de canções populares. Os métodos cruéis do esquadrão também ganharam prestígio durante o regime militar. Técnicas de tortura e assassinatos passaram a ser usadas por integrantes do Exército e da Polícia Militar no combate à guerrilha e para desbaratar os grupos de esquerda. Em 1969, Fleury comandou a emboscada que levou à morte do líder comunista Carlos Marighella na Alameda Casa Branca.
Rota
No combate ao crime comum, policiais das Rondas Ostensivas Tobias de Aguiar (Rota) assumiram nos anos 1970 o posto de “caçadores de bandidos”, celebrados pelo povo. “Na periferia, a população beijava nossa mão”, lembra o coronel Niomar Cyrne Bezerra, ex-comandante da Rota na época.
Nos anos 1980, saiu da PM um dos principais matadores da história da cidade. O soldado Florisvaldo de Oliveira, o Cabo Bruno, morto há duas semanas depois de ficar 27 anos preso, iniciou sua carreira de justiceiro matando a soldo de comerciantes. Logo justiceiros pipocaram por todos os cantos de São Paulo. De forma geral, todos alegavam matar bandidos em defesa dos trabalhadores.
Em 1987, depois da prisão de Francisco Vital da Silva, justiceiro conhecido como Chico Pé de Pato, a população do Jardim das Oliveiras, na zona leste, foi em peso ao Fórum de Santana pedir sua liberdade.
Com o passar dos anos, no entanto, foi ficando mais claro que os homicídios, em vez de controlar o crime, provocavam novos assassinatos, em círculos ininterruptos de violência. Se por um lado eliminavam suspeitos, consolidavam também o medo da morte e aguçavam o desejo de vingança.
É o que revela a história do matador César de Santana Souza, que nos anos 1990 dizia ter matado mais de 50 pessoas no Grajaú, na zona sul. Ele praticou o primeiro homicídio por vingança, depois que um amigo foi morto em um campinho de futebol. Jurado de morte, passou a matar por razões cada vez mais banais, sempre que sentia que corria risco de ser morto. Ele chegou a acreditar que a violência o ajudaria a dominar o bairro. Depois de um tempo, percebeu que homicídios serviam apenas para provocar novas mortes. Em 2006, foi assassinado por integrantes do Primeiro Comando da Capital (PCC) que passaram a vender drogas em seu bairro.

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