quinta-feira, 6 de setembro de 2012

Desnutrição, pobreza e sofrimento psíquico: uma articulação necessária

Desnutrição, pobreza e sofrimento psíquico: uma articulação necessária
 
Os temas da pobreza e da desnutrição mereceram, nos últimos anos, especial atenção no Brasil. As políticas sociais ganharam escala, com o crescimento substancial do público por elas atendido e de suas dotações orçamentárias.

Igualmente importante foi o fato de que tais políticas passaram, cada vez mais, a fazer parte da agenda não apenas de governos mas também da sociedade. Através de conselhos e outras instâncias de participação, representações sociais vieram a exercer um relevante papel propositivo e de controle social.

Como decorrência desse contexto, multiplicou-se também a produção acadêmica acerca da pobreza e desnutrição, bem como a realização de pesquisas que melhor instrumentalizaram, com as informações geradas, o acompanhamento dessas políticas.

Um aspecto a destacar, considerando o processo de elaboração acerca dos dois temas, diz respeito ao enfoque interdisciplinar assumido em grande parte das análises realizadas. Essa perspectiva não é de pouca importância. Foi através de uma visão intersetorial no debate acerca da segurança alimentar e nutricional que o país se constituiu em uma referência reconhecida sobre esse tema, nos últimos anos.

Aliás, o "nutricional" hoje presente na orientação das políticas alimentares de diversos países foi introduzido pelo Brasil ao longo de sua participação em diversos foros internacionais. Da mesma maneira, a perspectiva intersetorial foi progressivamente adotada na formatação das políticas de combate à pobreza, rompendo-se com os guetos a que ficavam confinadas as diversas áreas afetas a esta questão.

Porém, apesar de todos os progressos, a abordagem intersetorial e as intervenções integradas são procedimentos ainda não suficientemente assimilados, diante de uma cultura que foi constituída na perspectiva da superespecialização. O fato é que a complexidade de problemas como a desnutrição e a pobreza não autoriza acreditar ser possível resolvê-los de forma segmentada e a partir de focos específicos.

Dentro da perspectiva intersetorial, que ainda está se consolidando, algo de novo surge nesse campo de formulação e aplicação nas políticas sociais. Trata-se da percepção de que o elemento psicológico também é fator determinante sobre o qual se precisa atuar, quando tratamos do enfrentamento da pobreza e da desnutrição.

Entretanto, essa percepção nem de longe está assimilada no debate travado hoje no país. É pela riqueza dos argumentos apresentados e pela contribuição que oferece para que o tema possa ser melhor debatido que a publicação de "Desnutrição, Pobreza e Sofrimento Psíquico" adquire significado particular e de grande oportunidade dentro de tudo aquilo que atualmente se produz a respeito.

A partir de diferentes estudos organizados nessa publicação, a dimensão do sofrimento psíquico aparece como componente constituinte e, ao mesmo tempo, resultante da pobreza e da desnutrição. Até aqui, o enfrentamento de ambos limitou-se quase sempre a aspectos relacionados à renda e ao acesso a serviços sociais.

A superação de tais problemas exige a aplicação de políticas públicas efetivas nesses campos. Mas tal superação passa também pela capacidade de reação do indivíduo frente a sua vulnerabilidade e, também, do meio social que o circunda. Aí se apresenta, então, um desafio de difícil resposta frente à sensação de impotência que faz com que os indivíduos nessa condição se submetam e se conformem com as condições mais adversas, enredando-os em um círculo vicioso de improvável ruptura.

São sujeitos de direitos, mas não se identificam como tais. E esse é um dos maiores desafios para um país que deseja avançar em um processo de emancipação social de uma parte ainda significativa de sua população, sob a égide do respeito aos direitos humanos.

O que diversos dos textos que compõem "Desnutrição, pobreza e sofrimento psíquico" demonstram é que as mudanças nos campos econômico, social e político podem não ser suficientes, embora sejam indispensáveis, se não contarem também com a capacidade de resgate pessoal do sofrimento psíquico a que são submetidos os mais pobres.

Rejeitando o caminho das simplificações, a citada publicação indaga sobre os motivos que fazem com que alguns indivíduos, vivendo as mesmas adversidades, consigam se mobilizar para o enfrentamento dessas dificuldades, enquanto outros ficam esmagados por suas histórias de vida, privações e discriminações. Desafia-nos, assim, a enveredarmos na observação e compreensão da dinâmica do sofrimento psíquico.

Observar a pobreza mais extrema e a desnutrição, sob essa ótica, desloca para o subjetivo o esforço para o enfrentamento dessas questões. Cumpre, agora, como é dito no prefácio dessa publicação, também preocupar-se com "o jeito como as pessoas vivem a pobreza, com seu sofrimento e isolamento social, com seu desenraizamento".

É preciso que se compreenda a química resultante do "estresse financeiro, discriminação, violência, condições de vida desfavoráveis e desagregação social", diante dos significados que cada indivíduo atribui a esses fatos. Então, surge outra questão. Reconhecendo-se essa dimensão de natureza subjetiva, há como atuar através de políticas públicas?

No artigo intitulado "Sofrimento físico e pobreza", incluído na citada publicação dessa resenha, sua autora, Gisela Solymos, aponta para a necessidade de ampliação da capacidade de resiliência, para romper o circuito das condições adversas e das vulnerabilidades de natureza mais subjetivas.

Incorporar a preocupação com o sofrimento psíquico enquanto importante componente da desnutrição e pobreza já contribui enormemente para a melhor compreensão destas questões. Resta construir iniciativas de incidência sobre esse fenômeno.

As intervenções sobre as condições objetivas, possibilitando o acesso a direitos fundamentais dos mais desprovidos, prepara parte do terreno para esse resgate. Iniciativas que atuam sob o campo subjetivo dessas pessoas, emancipando-as de uma história de negação de direitos e desconstrução de suas capacidades e talentos, é o outro passo.

"Desnutrição, Pobreza e Sofrimento Psíquico" nos desafia nessa direção.

Francisco Menezes é pesquisador do Instituto Brasileiro de Análises Sociais e Econômicas (Ibase) e ex-presidente do Conselho Nacional de Segurança Alimentar e Nutricional ( FONTE FOLHA.COM


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