segunda-feira, 4 de agosto de 2014

abandonado em "praga" paulistana

Leonardo Felix
Colaboração para o UOL, em São Paulo (SP)
  • Leonardo Felix/UOL
    Fiat Palio abandonado na esquina da rua Pires de Oliveira com a Fernandes Moreira, na Chácara Santo Antônio, zona sul de São Paulo (SP) Fiat Palio abandonado na esquina da rua Pires de Oliveira com a Fernandes Moreira, na Chácara Santo Antônio, zona sul de São Paulo (SP)
Não é preciso procurar muito para achar um carro abandonado em São Paulo (SP). Basta sair um pouco das avenidas mais conhecidas e buscar travessas -- nem tão escondidas assim -- em regiões como Santana (zona norte) e Santo Amaro (zona sul) para dar de cara com algum deles. As características são parecidas: pintura maltratada pelo sol, sujeira acumulada, pneus murchos... O aspecto triste acentua o mistério: por que alguém abandona dessa forma um dos bens mais cultuados pelos brasileiros?

Leonardo Felix/UOL
Pintura danificada pelo sol e (muita) sujeira no para-brisa: sinais de um carro abandonado
A prática se tornando cada vez mais comum na maior cidade do país. Neste ano, até o final de julho, a Prefeitura removeu 1.050 veículos abandonados de suas ruas, quase o mesmo número do ano passado inteiro (1.132). O motivo é quase sempre o mesmo: falta de dinheiro para consertar algum defeito do carro, ou excesso de dívidas. "Quase todos são carros sucateados e sem valor de marcado; o dono usa até onde dá e depois larga na rua", explica Adauto Martinez, especialista em trânsito e transportes.

Com a legislação atual, resolver o problema não é fácil. O Código de Trânsito Brasileiro (CTB) nada prevê a respeito (a não ser que o automóvel estiver estacionado em local proibido), e cabe aos municípios tratar desses "entulhos de metal" de acordo com suas respectivas leis de limpeza urbana.

Em 2013, o deputado federal Oswaldo Reis (PMDB-TO) apresentou projeto de lei que transforma o abandono em infração gravíssima no CTB, com aplicação de multa e apreensão do veículo.

A proposta ainda está em tramitação e, com a aproximação das eleições, fica difícil imaginar que seja votada em 2014. Enquanto isso, São Paulo usa suas próprias leis para lidar com a questão. Veja como funciona: 
A burocracia da remoção
  • Abandono
    O abandono só pode ser assim caracterizado quando um automóvel fica cinco dias seguidos parado em um mesmo local, sem aparição do proprietário.
  • Identificação
    Antes de iniciar o processo de remoção, o fiscal busca o histórico do automóvel pelo número da placa ou chassi. Se a unidade em questão for roubada, o caso é encaminhado à polícia.
  • Aviso
    A partir da identificação, a subprefeitura cola um aviso no vidro do veículo, indicando que o proprietário tem cinco dias úteis para retirá-lo dali. "A maioria retira antes, e tem até quem fique deslocando o carro de local em local a cada notificação", conta Carlos Candella, subprefeito de Santana.
  • Remoção
    Se nada for feito até o fim do prazo do aviso, o Poder Público fica autorizado a remover o veículo e depositá-lo em um dos 28 pátios existentes na cidade. Só no de Santana são retirados, em média, 15 por mês. Veículos sem placa e numeração de chassi são encaminhados diretamente ao leilão de sucata, rendendo de R$ 0,15 a R$ 0,20 o quilo.
  • Notificação
    Com o carro no pátio, a subprefeitura tem 20 dias para notificar o dono do carro sobre a remoção, "convidando-o" a comparecer para buscá-lo. Para isso, ele terá de pagar uma multa de R$ 15.000, mais taxas de R$ 9,50 por hora gasta na remoção, R$ 6,55 pelo transporte e R$ 3,80 por pernoite no pátio.
  • Espera
    Quando notificado, o dono passa a ter 30 dias para manifestar interesse em recuperar seu bem. "Praticamente ninguém faz isso", afirma Candella. O especialista Adauto Martinez Filho explica o motivo: "Os custos para tirá-lo são muito maiores que o próprio valor do próprio carro. Não vale a pena", diz.
  • Na fila
    Passados quase 90 dias desde a remoção, o automóvel renegado finalmente entra para a fila dos leilões. Só que ainda vai ter de esperar, em média, mais três meses até ter o destino enfim selado.
  • Fim
    No leilão, as peças e ferragens do veículo são vendidas à parte e rendem, "se o carro estiver em estado razoável", R$ 3.000, dinheiro quase sempre usado para abater parte da dívida em nome do proprietário.
Fonte: Secretaria de Coordenação das Subprefeituras de São Paulo
LONGA ESPERA
Há uma diferença entre a letra da lei e o que ocorre na prática com os carros abandonados. Em vez de cinco dias, um automóvel desses costuma ficar meses parado até ser removido, o que traz outros problemas: a carcaça pode virar esconderijo para assaltantes e até foco de doenças como dengue (a água da chuva acumulada vira criadouro do mosquito) e tétano (se houver contato humano com partes enferrujadas).

Não dá para culpar só o poder público por essa morosidade: a omissão da população contribui para a permanência desses esqueletos sobre rodas em nossas vias. "Os órgãos competentes precisam ter conhecimento da existência desses carros", ressalta Martinez. Muitas vezes, porém, o carro pertence a um morador da região e, com receio de prejudicar um conhecido, os vizinhos ficam quietos.

UOL Carros saiu com essa impressão após um passeio pela Chácara Santo Antônio, bairro da zona sul paulistana. Trata-se de uma das regiões com maior incidência de abandono de veículos na cidade, e se engana quem imagina que só modelos muito antigos são renegados. Em nossa visita, encontramos dois Volkswagen Polo sedã, um do início e outro da metade dos anos 2000; um Peugeot 206 também de meados da década passada; e um Fiat Palio do final dos anos 1990. 
Projeto tenta acelerar descarte
  • Em 2011, o vereador Adilson Amadeu (PTB) criou um Projeto de Lei que tenta reduzir a no máximo 30 dias o prazo para descarte de veículos removidos em São Paulo. Já aprovado em cinco comissões da Câmara, o PL aguarda agora votação. "Pode ser que eu o coloque em pauta ainda este ano", adianta. O subprefeito de Santana discorda da ideia. "É preciso dar tempo para defesa dos proprietários". Foto: Leonardo Felix/UOL
O segundo Polo estava estacionado em frente a um edifício da rua Américo Brasiliense. De acordo com o porteiro, o exemplar pertence a um dos moradores. "Ele diz que ficou meio apertado [de dinheiro], sem condições de arrumar, então acabou deixando aí. Já teve gente, inclusive aqui do prédio, querendo comprar, mas ele não mostrou interesse em vender", conta.
Já o Peugeot é de um cliente de uma oficina localizada na mesma rua, poucas quadras adiante. "Foi deixado aqui para reparos do motor, mas o dono não podia pagar e acabou deixando aí na frente. Ele diz que vai buscar e terminar de consertar quando tiver condições", diz um mecânico do estabelecimento, que não quis se identificar.
 
BLOG DOS ABANDONADOS
Morador daquela região, o jornalista Marcos Rozen criou em 2008 um blog só para tratar do tema, que hoje se tornou uma seção dentro de outro endereço sobre o universo das quatro rodas, o "Carro Cultura". "Comecei a fotografá-los por curiosidade e, para minha surpresa, descobri que outras pessoas também se interessavam pelo tema. Elas passaram a fotografar os carros de seus bairros/cidades e enviar para o blog", comenta. 
Leonardo Felix/UOL
Polo sedã (esq.) e 206 (dir.) foram deixados para trás após 10 anos de uso
Em seis anos, Rozen chegou a flagrar até uma Fiat Marea Weekend zero quilômetro sucateada, e conheceu histórias de abandono das mais estranhas. "Houve um caso de um sujeito que largou um Jeep Willys em frente ao prédio da ex-mulher só para irritá-la, para que ela visse o carro e lembrasse dele toda vez que saísse ou chegasse em casa".

Entusiasta de automóveis, Rozen defendeu o estímulo a um "processo de recuperação" dos veículos, algo extremamente raro de acontecer -- muitos donos até têm a chance de vender seus abandonados, mas recusam porque teriam de arcar com as dívidas antes de consumar a venda. 
Arquivo pessoal
Este Gurgel X12 1976 é um dos raros casos de carro abandonado que conseguiu "achar um novo lar"
Raro, mas não impossível: em 2002, o então gerente de bar Cristiano Arante Pessoa encontrou abandonado na rua Fradique Coutinho, Vila Madalena, um Gurgel X12 1976. "Ele estava numa situação bem ruim. Tinha até mendigo morando dentro", relembrou.

Admirador de antigos, o hoje proprietário de um bar na zona sul localizou o dono e fez uma oferta pelo jipinho. "No fim, ele resolveu me doar, e eu só tive que pagar R$ 200 para transferir ao meu nome."

Claro, os gastos não pararam nisso. Na época, Pessoa pagou R$ 3.000 para reparar o Gurgel e, neste ano, está investindo mais R$ 10.000 em outra restauração. E não se arrepende de nenhum centavo gasto. "Ele está ficando lindo. Só isso já vale a pena", garante.

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