FONTE artigo
do sociólogo Ricardo Antunes, publicado pela Revista Caros Amigos, em
abril de 2007.
No início da década de 70, o capitalismo sofreu transformações muito
profundas no tempo, no espaço, no modo de produção, na forma de se
reproduzir, no perfil da classe trabalhadora, na relação com o
maquinário e na financeirização. Aquela forma de produção
taylorista/fordista genialmente estampada pelo Chaplin em Tempos Modernos,
a grande indústria concentrada, verticalizada, com milhares de
trabalhadores operando na mesma fábrica, foi sofrendo alterações
significativas a partir da segunda metade do século passado. Isso
ocorreu em função das mudanças tecnológicas, especialmente a
informatização do sistema de produção, como resposta do capital às lutas
sociais dos anos de 1968 a 1970, na Europa e na América Latina, que
questionavam o controle social da produção.
Todos esses fatores, as lutas sociais, a crise estrutural do
capitalismo, a superprodução, o envelhecimento do sistema
taylorista/fordista, a tendência decrescente das taxas de acumulação,
fizeram com que o capitalismo mudasse um pouco sua forma para que
pudesse continuar sendo o capitalismo. Em vez de uma grande empresa
concentrada, constituíram-se extensões dessa empresa, mais enxuta,
pequena e espalhadas em diversos locais. Um dos primeiros experimentos
disso foi a Benetton já no início dos anos 70 na Itália, uma empresa que
se esparrama em milhares de unidades pelo mundo inteiro conectadas pela
Internet. Em vez de ter milhares de operários em uma mesma fábrica, são
milhares de funcionários espalhados em centenas ou até milhares de
pequenas unidades produtivas pelo mundo e, com isso, a empresa se torna
mais rentável. Essa foi uma das respostas do capital às taxas
decrescentes dos níveis de lucro que se iniciam a partir dos anos 70, e
também uma maneira de o capital desorganizar a classe trabalhadora.
Nesse período, Margaret Thatcher na Inglaterra, Ronald Reagan nos
Estados Unidos, Gustav Heinemann na Alemanha vêm com o neoliberalismo,
um ideário que transfere tudo para o mercado como forma de reestruturar
os níveis de acumulação e o padrão de dominação do capital.
Em 1989/90, a URSS desmorona, mostrando de que o capitalismo é o sistema
máximo da história. É a expressão da hegemonia, conciliando a
democracia, o capitalismo e o mercado. Essas mudanças afetaram muito o
mundo produtivo e a forma de ser no trabalho, abalando violentamente a
classe trabalhadora, os sindicatos, os partidos de esquerda. Entre
tantas conseqüências está a precarização estrutural do trabalho. Não é
uma precarização circunstancial, mas é estrutural. E por que o
desemprego, por exemplo, é um fator estrutural? Porque o capitalismo tem
uma lógica destrutiva. O crescimento ocorre destruindo. Destrói o
ambiente, destrói os recursos naturais, destrói a força humana de
trabalho e destrói pela guerra. O sistema precisa destruir para poder se
alavancar. Esse traço afetou bastante a classe trabalhadora. Mantêm-se
um exército de desempregados, analfabetos e semi-analfabetos como
combustível a ser utilizado no funcionamento da engrenagem capitalista. O
mercado estimula o consumo em função da produção, do lucro. O
investimento na produção de armas demanda inclusive, o planejamento de
novas frentes de guerra. Como lucrar com a indústria bélica, se não
houver guerra?
Curiosamente, hoje está se realizando a profecia de Marx na sua principal obra, Capital: o modo de produção capitalista acabaria destruindo as próprias fontes de riqueza: o ser humano e a natureza. Gandhi também já alertava quando dizia que a Terra atende às necessidades humanas de todos, mas não agüenta a voracidade das elites consumidoras.
Que futuro podemos esperar para o mundo do trabalho?
Estamos vivendo com uma nova dinâmica nas relações de trabalho.
Especula-se de que estamos no fim da era do trabalho. É comum ouvir: o trabalho vai desaparecer.
Isto é falso. Primeiro, porque a humanidade não se reproduz sem o
trabalho, é uma coisa elementar. Segundo, porque o capital não se
reproduz sem trabalho humano, então o capital não pode eliminar o pólo
propulsor ou um dos pólos propulsores da sua riqueza. Terceiro, há um
novo cenário e modelo de execução do trabalho. No passado, o operariado
da indústria, vestindo macacão, repetindo os mesmos gestos na linha de
produção, era maioria. Hoje, temos os trabalhadores do telemarketing com
70 a 80 por cento da classe trabalhadora feminina, ampliação imensa na
prestação de serviços e aumento dos setores industriais nas periferias.
As grandes empresas estão atravessando as fronteiras, instalando-se onde
o custo do empregado é menor. Montadoras, por exemplo, saem da Europa
ou do Brasil e erguem a fábrica na China, sem consideração aos direitos
trabalhistas. Essa mudança reconfigura uma nova classe trabalhadora,
mais heterogênea, mais diferenciada, individualista, atuando em setores
altamente informatizados. A indústria de calçados, em quase 70 por
cento, tornou-se terceirizada.
Então, qual é o futuro? Se a lógica do sistema global se mantiver, vamos
ter no mundo do trabalho, um pequeno grupo, selecionado e sofisticado,
com boa remuneração, porém instável, que hoje pode estar na Argentina,
amanhã na Índia e depois na Rússia, mas que compõe o grupo de
assalariados altamente qualificados. Não são proprietários dos meios de
produção, é a alta fatia assalariada, mas com muita instabilidade,
perdendo o emprego facilmente. Um gerente de banco pode perder o emprego
com 40 anos e aí não encontra mais emprego, esse é o topo dos
assalariados.
Na base, um desemprego e uma precarização estrutural profunda. E os
índices de desemprego reais no mundo já são altos, muito maiores do que
os dados divulgados. No Brasil, os dados oficiais sobre desemprego
anunciam 10 por cento nas capitais. Até muito recentemente tínhamos
índices de 20 por cento oficiais. Na Argentina, no ápice da sua crise em
2001, chegou a ter índices reais de 40, 50 por cento de desemprego. De
cada dois argentinos um era desempregado. Fazendo o que, então?
Trabalhos precários. Na base um desemprego muito ampliado, e no meio do
mundo do trabalho uma massa realizando trabalhos precários, caindo cada
vez mais na informalidade, trabalhando muito mais e ganhando menos e sem
nenhuma estabilidade. O modelo de contrato nas relações de trabalho
adotadas no século 20 está sofrendo modificações. O sistema de capital
procura uma classe trabalhadora supérflua, descartável, que possa
oscilar conforme a necessidade e critério da empresa. Um núcleo cada vez
menor trabalha muito e, no outro lado, um núcleo cada vez maior de
homens e mulheres vive na informalidade, quando não no desemprego, na
expectativa de ser aproveitado oportunamente.
Como o trabalhador pode se organizar?
No século 21 temos que pensar alternativas para resistir ao avanço
desumano do capital. Quando o Fórum Social Mundial se reúne sob o lema: "outro mundo é possível”,
surgem iniciativas cada vez mais consistentes e que viabilizam relações
mais humanas. Os governos da América Latina estão mais sintonizados com
as classes sociais historicamente marginalizadas pelas elites
dominantes. A expressão mais evidente é da Venezuela com Hugo Cháves e
da Bolívia com Evo Morales que promovem a visão socialista em seus
governos. As lutas sociais e as desigualdades que se instalaram ao longo
da história estão obrigando a humanidade e governos a buscar soluções.
O sindicalismo enfrenta crises, passa por dificuldades na base da sua
organização. Mas é também uma oportunidade para repensar o modelo e a
estrutura sindical. Incluir, por exemplo, a mulher trabalhadora no
espaço sindical, considerando suas conquistas no mercado de trabalho. O
sindicato de esquerda sempre foi muito machista. Como organizar um
sindicato de telemarketing onde 80 por cento dos trabalhadores são
mulheres? O sindicato também tem que incluir o terceirizado, tem que
enfrentar a organização dos jovens.
Outra forma de organização dos trabalhadores para resistir e conter a
exploração que sofrem, são as cooperativas. Temos exemplos vindos da
Argentina, que passou por uma grave crise econômica e desemprego maciço.
O movimento de trabalhadores desempregados mobilizou a sociedade e
constituiu uma cooperativa para assumir e recuperar uma fábrica no setor
de metalurgia que estava em processo de falência. O mesmo ocorreu com
um hotel. Ambos haviam sido abandonados pelos patrões. A região do
calçado no Rio Grande do Sul enfrentou problemas semelhantes na ocasião
do plano real, sendo que os contratos haviam sido firmados com o dólar
mais elevado. Muitas fábricas fecharam as portas. O Governo do Estado e
as prefeituras passaram a estimular a organização dos desempregados em
torno de cooperativas para reiniciar as atividades. O movimento alcançou
sucesso. As fábricas voltaram a funcionar sem o patrão privado.
Na luta social, o MST (Movimento Sem Terra), há mais de vinte anos vem
demonstrando que é possível aglutinar os deserdados da terra, os
desempregados do campo que foram para a cidade e hoje são marginalizados
na periferia, tentando retornar às suas origens. Igualmente, os
partidos de esquerda, quando chamam para a participação e o envolvimento
das massas, surgem como novas formas de organização e de resistência.
Não há hierarquia nas lutas sociais. Existem formas novas e tradicionais
de organização nos diversos setores de atuação dos trabalhadores. A
mais importante é aquela que faz a luta mais combativa e radical nas
suas reivindicações. O que é fazer a luta mais radical? Não é berrar,
agredir. É tocar nas raízes, evidenciar as causas do problema. É o
enfrentamento das oligarquias e do setor privado, como ocorre em torno
do petróleo na Venezuela e do gás na Bolívia. Os governos desses países
estão tocando nas feridas, invertendo privilégios, por isso estão
enfrentando críticas e protestos raivosos das elites, apoiadas pelos
interesses dos Estados Unidos. A direita não aceita a democracia quando
vem das massas, a direita só gosta da democracia das classes burguesas, e
a direita latino-americana é muito perversa.
No entanto, o capital não brinca. A lógica do interesse dos capitalistas
é quebrar politicamente a força e a organização dos trabalhadores. A
visão taylorista é eficiente para tornar o trabalhador mais dócil e
conformado, passando-lhe a idéia que ele pode chegar lá. Querendo, você consegue, você sozinho é capaz.
É o individualismo possessivo, onde um trabalhador compete com o outro
ao invés de unir forças. É uma forma subjetiva que a empresa utiliza
para enquadrar o trabalhador no modelo passivo e obediente de produção. O
trabalhador passa a ser chamado de colaborador, parceiro, associado com
chance de ver sua foto destacada em local público no estabelecimento,
como prêmio da sua boa conduta.
O desafio dos movimentos sociais, dos sindicatos, dos partidos de
esquerda, dos fóruns sociais mundiais é resgatar o sentido do
pertencimento de classe. É passar da força individual para a força
coletiva. No estágio de maior precarização dos trabalhos, quando os
trabalhadores estiverem no limite de sua insegurança em virtude da
exploração que sofrem, há uma tendência que esses movimentos comecem a
responder mais coletivamente. A China, citada como modelo de
desenvolvimento, saltou de 5.000 para 85.000 conflitos sociais por ano.
O sindicalismo ganhou ou perdeu com o governo Lula?
As dificuldades do sindicalismo no Brasil não começaram no governo Lula.
Depois da ditadura militar houve um ciclo de crescimento das lutas
sociais. A burguesia considera a década de 80 no século passado, como
década perdida. Foi uma década perdida para o capital, porque para o
mundo do trabalho foi um período majestoso. Bastaria dizer que em 1980
nasceu o PT, em 1983 nasceu a CUT e em 1984 foi criado o MST. O Brasil
viveu a eclosão das mais importantes greves. Tivemos a elaboração da
nova constituição, promulgada em 1988, que foi relativamente positiva
para os trabalhadores porque a CUT e os movimentos sociais fizeram
pressão pelos direitos sociais.
Na década de 90, o rumo foi alterado. A política neoliberal entra com
força em nosso país. Ocorreram as privatizações do governo Collor,
Itamar e Fernando Henrique, profundamente destrutivas, a precarização do
trabalho se intensificou, a mudança da legislação trabalhista começou
com Fernando Henrique, as falsas cooperativas encontraram brechas,
contratos parciais temporários começaram a quebrar a CLT. A partir daí
foi muito profunda a destruição de forças vivas do trabalho, a quebra
dos sindicatos fortes, de centrais sindicais fortes, a quebra de
partidos de esquerda, o PCB desapareceu, o PT sofreu uma mutação muito
profunda e, quando chegou o governo Lula em 2002, a perspectiva dos
trabalhadores, do povo brasileiro era de que ia começar a recuperação
das bandeiras que marcaram a força de sua história. O Lula não foi uma
construção fictícia, é uma figura que tem essa força construída ao longo
de três décadas, ele nasceu como um líder enraizado nas lutas
sindicais, ele entra no sindicato do ABC em São Bernardo no fim dos anos
60 e em 1975 e 1978 é eleito para a presidência do sindicato com uma
votação consagradora, lidera as greves de 1978, 1979, 1980, é candidato
em 1982 a governador de São Paulo, candidato à presidência em 1989,
quase ganha as eleições, só não ganha porque foram fraudadas. O PT e o
Lula de 2002 têm muito pouco a ver com o PT e o Lula de 1982, ou da
década de 80. Uma análise mais profunda sobre este tema, está nos
livros: Uma Esquerda Fora do Lugar – O governo Lula e os Descaminhos do PT e A Desertificação Neoliberal do Brasil, Collor, FHC e Lula escritos por Ricardo Antunes.
A mudança de postura é um fenômeno complexo no cenário político. Não foi
só o PT que sofreu essa crise. Uma grande parte da esquerda mundial
desencantou-se. O Frei Betto disse em uma entrevista para a imprensa
que, nos dois anos e meio que ficou no governo, ele não ouviu uma única
vez a palavra socialismo no palácio. Em 2002, todos aqueles que votaram
no Lula, tinham a idéia, mesmo que modesta, de que seu governo pudesse
jogar um pouco de areia no rolimã neoliberal. A verdade é que ele botou a
melhor graxa possível nesse rolimã neoliberal, por isso o
neoliberalismo ganhou força no governo Lula. Sinal disso é sua ida para o
Fórum Econômico mundial na Suíça e não no Fórum Social Mundial. Delfim
Neto dizer que Lula é um estadista, enquanto o MST está naturalmente
enfurecido porque o atual governo não promove a reforma agrária. Quem
votou em Lula não esperava que ele fosse um pouco melhor que o PSDB, mas
que ele fosse mudar profundamente o governo do PSDB.
A ruptura com o modelo elitista e dominante de governar não ocorreu com a radicalidade esperada. Em uma entrevista à Folha de São Paulo, Lula disse que tinha uma tristeza para revelar: nunca ninguém fez tanto pelos ricos no Brasil e eles não vão votar em mim.
Lula também paga um preço por ter se distanciado das origens. A luta
social pelas classes mais pobres rendia-lhe fidelidade.Com algumas
diferenças, tornou-se um político tradicional. Não há medidas do governo
que confronte estruturalmente a raiz do neoliberalismo como ocorre nos
governos Chaves e Morales.
O capitalismo hoje pode crescer enormemente desempregando, porque tem
maquinário, tem tecnologia. O mercado consumidor não é de carros
populares, é de carros sofisticados. O mundo do mercado é o mundo para
25 ou 30 por cento da humanidade, que são as classes média e os donos
dos meios de produção. Para mudar a estrutura da miséria, é preciso
ferir o interesse dos núcleos da alta burguesia, ferir os interesses dos
lucros dos banqueiros, fazer uma reforma tributária que pese impostos
maiores sobre os mais ricos e libere os mais pobres, fazer a reforma
agrária e parar de pagar os juros que remuneram o setor financeiro, quer
pela dívida interna ou externa.
O núcleo dominante que representa os trabalhadores fazem parte do atual
governo Ex-diretores ocupam cargos públicos. Há um aprisionamento das
centrais sindicais em relação ao governo. No segundo mandato do governo
Lula, o fundamental para os sindicatos, é impedir a reforma trabalhista,
uma reforma que, no fundo, cede às imposições dos capitais globais no
sentido de flexibilização dos direitos dos trabalhadores. Há uma pressão
das elites para desmontar direitos conquistados desde a época das lutas
operárias sob o getulismo e que hoje, sob o pretexto de que são
arcaicas, podem desaparecer.
No entanto,vamos viver uma reorganização no sindicalismo de esquerda no
Brasil, um processo de reestruturação dos movimentos sociais. Nesse
sentido, o país está atrás de muitas lutas sociais da América Latina. A
convergência e a aproximação dos governos latinos, mais comprometidos
com a luta da classe trabalhadora, permite enfrentar o controle
historicamente exercido pelo capital.
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