ue nem o diabo gosta, por José Ribamar Bessa Freire
Em Taqui Pra ti
Dizem que domingo passado o Diabo saiu do inferno e foi dar uma voltinha na Vila da Penha, no Rio. Escondeu o rabo preso, vestindo o terno do deputado Eduardo Cunha (PMDB, vixe, vixe). Ocultou o chifre, botando a peruca do pastor Silas Malafaia. A cueca usada era do deputado Marco Feliciano (PSC, vixe, vixe), pastor da Catedral do Avivamento. Assim, disfarçado e endomingado como quem vai à missa, o Capiroto presenciou uma maldade que nem ele tem coragem de praticar: o apedrejamento de uma menina de 11 anos, que saía alegre da festa de candomblé vestida de branco com seu turbante – o ojá – enrolado na cabeça.
– “Macumbeira, vai queimar no inferno. Sai Satanás” – gritavam os marmanjos. Na mão esquerda traziam a Bíblia, na direita pedras que quebraram a cabeça de Kayllane Campos, uma criança. Saiu muito sangue, ela desmaiou, enquanto eles berravam: – “Aleluia! Jesus está voltando”, mas quem voltou mesmo foi o “Coisa Ruim”, por não acreditar naquilo que via: seres humanos que eram ainda mais escrotos do que ele. Horrorizado com tanta perversidade, o Capeta se pirulitou de regresso ao seu cafofo, onde está à espera dos apedrejadores, numa versão atualizada da narrativa de um personagem do filme Rashomon de Akira Kurosawa.
Este não foi um fato isolado. O país respira intolerância por todos os poros. O fanatismo, inclusive no campo político, atinge nível tão insuportável que nem o Diabo aguenta e até Deus duvida. Diariamente, em algum lugar do país, pitbulls engravatados agridem religiões afro-brasileiras e profanam a Bíblia que carregam como se fossem tijolo. O registro oficial, que deixa de fora muitas ocorrências não notificadas, apresenta dados alarmantes nos últimos quatro anos. Os crimes foram 15 (2011), 109 (2012), 231 (2013) e 249 (2014), com o Rio em primeiro lugar e o Amazonas em terceiro, numa curva sempre crescente.
Pacto com o Capeta
Na última quinta-feira, foi a vez de um templo espírita na Rua Humaitá (RJ) ser apedrejado por três indivíduos com a Bíblia na mão. Quebraram estrela, imagens de Buda e de Nossa Senhora Aparecida. Nem os mortos escapam: no mesmo dia, lá em Uberaba (MG), danificaram o túmulo do médium Chico Xavier. Parece que o cordeiro de Deus não tirou os pecados do mundo, mas tirou a humanidade e a inteligência dos agressores.
Não temos notícias de punição para tais crimes hediondos, embora representantes da Umbanda e do Candomblé tenham pedido ao Ministério Público abertura de inquérito civil para investigar casos de intolerância religiosa, mencionando os “Gladiadores do Altar”, grupo formado por jovens da Igreja Universal (Iurd), que uniformizados como militares, marcham e gritam palavras de ordem como um batalhão do exército.
Os donos de Cristo
Já o contrário aparece com frequência. A Igreja Universal postou no Youtube vídeos que debocham do Candomblé e da Umbanda. O Ministério Público Federal, invocando a liberdade de crença e de culto garantida pela Constituição de 1988, pediu no ano passado que fossem de lá retirados. No entanto, o juiz Eugênio Rosa de Araújo, da 17ª Vara Federal (RJ), indeferiu, afirmando que “manifestações religiosas afro-brasileiras não podem ser classificadas como religião”, porque – segundo ele – “não possuem um livro sagrado como a Bíblia ou o Alcorão”.
Resta saber as razões de tanto ódio contra quem reza por outra cartilha. Uma pista foi dada por Contardo Calligaris em sua coluna na Folha de SP desta semana: “Em geral, os que transformam a fé em comércio preferem deter o monopólio de seu profeta, de seus dogmas, de suas cerimônias (…) querem ser os únicos donos do Cristo para vendê-lo melhor”.
Talvez a intolerância possa mesmo ser explicada pela lógica do mercado. Certos comerciantes da fé e empresários espertalhões do faith-business buscam atrair adeptos, disputando entre si o dízimo e os recursos do estado com a isenção de impostos e dotações orçamentárias conquistadas pela bancada evangélica no Congresso Nacional. Embora não saiba, a menina apedrejada pagou pelo fato de o candomblé ter crescido 31.3% em dez anos, num período em que a população brasileira aumentou 15.7%. Daí o preconceito e a pedrada que horrorizou o próprio diabo.
O arroz e a flor
A antropóloga Renata Menezes, professora no Museu Nacional e pesquisadora do ISER, abre seu artigoReligiões e culturas: o desafio da diferença com o relato de um cara que colocava flores no túmulo da mãe, quando viu um chinês colocar um prato de arroz na lápide ao lado.
– Desculpa, mas o senhor acha mesmo que o seu defunto virá comer o arroz – o cara pergunta.
– Sim, ele costuma vir na hora em que a senhora sua mãe vem cheirar as flores – respondeu o chinês.
–
P.S. O relato da Renata menciona apenas um parente, mas não resisti e meti a mãe no meio. A autora discute a diversidade humana, a forma como os grupos sociais lidam com as diferenças religiosas e o choque cognitivo entre eles. O leitor interessado em aprofundar o debate sobre religião, cultura e sociedade no Brasil, assim como sobre as relações entre umbanda e pentecostalismo, encontra reflexões esclarecedoras nos artigos de Renata de Castro Menezes, entre os quais Aquela que nos junta, aquela que nos separa: reflexões sobre o campo religioso brasileiro atual a partir de Aparecida e no texto de Rubem César Fernandes “Aparecida: nossa rainha, senhora e mãe, saravá”.
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