quarta-feira, 16 de abril de 2014

Um projeto de R$ 30 bilhões

Enviados especiais
Marcelo Leite
Dimmi Amora
Morris Kachani
Lalo de Almeida
Rodrigo Machado
A explosão às 6h da manhã arranca uma camada de 9 m de espessura do bloco de migmatito numa área de 750 m² que já foi a morada de árvores centenárias na zona rural de Altamira e Vitória do Xingu (PA). Assentada a poeira, resta uma montanha de fragmentos dessa rocha dura, aparentada com o granito. À meia-noite, nem um pedregulho estará mais ali.
Duas escavadeiras se posicionam lado a lado, a 50 m uma da outra. Cinco levantamentos cada e, em menos de três minutos, enchem uma carreta com 32 toneladas de pedras. Sai um caminhão, encosta outro. Em 20 minutos, partem 18 caçambas cheias. Não há um segundo de descanso.
O ritmo frenético de homens e máquinas marca a construção de um canal de 20 km de comprimento, para dar passagem aos 14 milhões de litros de água por segundo desviados do rio Xingu –vazão quase 530 vezes maior que a do canal principal de transposição do São Francisco– que vão movimentar as turbinas da terceira maior hidrelétrica do mundo, e também uma das mais controversas: Belo Monte, da empresa Norte Energia S.A.
Quando estiver funcionando a toda força, a usina poderá produzir até 11.233 megawatts (MW) de eletricidade. Uma capacidade instalada suficiente para iluminar as casas de pelo menos 18 milhões de pessoas e ficar atrás só da hidrelétrica chinesa Três Gargantas (22.720 MW) e da paraguaio-brasileira Itaipu (14 mil MW).
Segundo a Empresa de Pesquisa Energética (EPE), do Ministério de Minas e Energia, o Brasil precisa acrescentar 6.350 MW anuais de geração elétrica, até 2022, ao seu parque atual de 121 mil MW (70% produzidos por hidrelétricas). Se pudesse funcionar a toda carga o ano inteiro, Belo Monte garantiria quase um quinto da eletricidade adicional de que o país vai precisar, mas isso só tem chance de ocorrer em quatro meses do ano.
A maior parte da capacidade de geração (11.000 MW) da nova usina ficará instalada na casa de força principal, junto da vila de Belo Monte do Pontal, cuja obra já avançou 47%. A barragem propriamente dita, contudo, ficará 60 km rio acima, do outro lado da Volta Grande do Xingu, no sítio Pimental, pouco depois do ponto em que o canal captará água para encher os 130 km² do reservatório intermediário. Junto ao vertedouro da barragem de Pimental, seis turbinas poderão produzir até 233 MW na casa de força auxiliar.
O pico de 11.233 MW só poderá ser alcançado entre fevereiro e maio, quando o Xingu atinge suas vazões máximas. Nos outros meses, as turbinas serão progressivamente desligadas. Entre altos e baixos, espera-se que Belo Monte garanta uma média de 4.571 MW, ou apenas 41% de sua capacidade instalada.
“Para começar a gerar, isso tudo tem de estar concluído”, diz a engenheira civil Roberta Martinelli Pimentel Pereira, 35, apontando para o canal onde poderiam acomodar-se facilmente 60 caminhões, lado a lado.
Belo Monte precisa começar a produzir energia em fevereiro de 2015, com a primeira turbina da casa de força auxiliar, mas isso vai atrasar uns três meses. Depois, de março de 2016 até janeiro de 2019, entram em linha as 18 turbinas da casa de força principal. Neste caso, nada pode atrasar. Na realidade, a Norte Energia trabalha com a hipótese de antecipar a montagem das turbinas principais, a partir da quarta ou quinta máquina, de modo a que todas estejam em operação antes do prazo contratual –o que trará ganhos consideráveis para o empreendedor.
No presente, o maior desafio de Roberta Pereira é domar as águas dos igarapés que cortam o curso do grande canal e completar, ainda em dezembro de 2013, a ensecadeira (barragem provisória, para manter a construção isolada do rio Xingu). A engenheira comanda 7.000 empregados e tem 12 anos “no trecho”, como se refere às grandes obras de infraestrutura por que passou. A ensecadeira já tem fundações prontas e a maior parte do aterro alcançou a cota de segurança, 95 m.
Belo Monte fervilha 24 horas por dia, dois anos e meio após o início oficial de sua construção, em junho de 2011. Com um custo estimado em R$ 30 bilhões, o prazo para começar a produzir energia é apertado, apenas 44 meses. Em Itaipu foram 120 meses; a previsão para a hidrelétrica de Santo Antônio, no rio Madeira (RO), era de 52 meses, mas a usina começou a gerar energia nove meses antes.

Problemas de comunicação

As obras de Belo Monte atingiram o clímax em outubro, com 25 mil trabalhadores (87% deles homens). Três quartos dos mais de 5.600 municípios brasileiros têm população menor que esse exército de operários.
De cidades bem menores que os canteiros da usina vieram João, José, Antônio, Pedro e Joaquim (que pedem para não ter seus verdadeiros nomes revelados). Sentados domingo à tarde na calçada da avenida João Rodrigues, em Altamira, os cinco bebem vodca com soda. Chegaram há pouco mais de um mês e já pensam em ir embora. Belo Monte foi para eles uma decepção. “Nosso salário, em vista de outros Estados, tá aqui”, diz João, com o dedo indicador perto do chão.
João não é barrageiro de primeira campanha. Em 2011, trabalhou na usina de Santo Antônio, no rio Madeira. Diz que lá sua renda mensal ficava entre R$ 1.700 e R$ 1.800. Em Belo Monte, o primeiro salário não passou de R$ 1.200. O teto de dez horas extras semanais negociado entre o Consórcio Construtor de Belo Monte (CCBM) e o Sintrapav (Sindicato dos Trabalhadores da Indústria da Construção Pesada do Pará) impede os operários confinados nos canteiros de trabalhar mais que 54 horas por semana –e, portanto, de ganhar mais.
Mais de dois terços dos trabalhadores vêm de fora de Altamira. O distanciamento da família é agravado pelo fato de nos canteiros só haver sinal da operadora Oi, que tem entre seus controladores a Andrade Gutierrez, líder das empreiteiras do CCBM (que conta ainda com Odebrecht e Camargo Corrêa). Quem tem celular de outras operadoras pena para falar com a mulher e os filhos. Os mais persistentes descobriram que há vestígios de sinal no morro da caixa-d’água perto do alojamento Canais, onde podem ser vistos com o aparelho amarrado em estacas fincadas no chão.
Segundo pesquisa Datafolha com 246 trabalhadores da obra entrevistados em Altamira, a maioria é de casados (51%), dos quais 40% têm mulher ou marido vivendo na cidade. Dois de cada três trabalham em Belo Monte há menos de um ano e pelo menos a metade não pretende ficar, instalou-se no local apenas em busca do emprego (38% já trabalharam em outras barragens).
  • Alojamentos de um dos três canteiros de construção de Belo Monte, em Canais - Lalo de Almeida/Folhapress
  • No morro ao lado de Canais, telefone celular de operário fixado para manter sinal - Lalo de Almeida/Folhapress
  • Após procurar sinal de operadora de celular, operário fala com a família - Lalo de Almeida/Folhapress
  • Refeitório no sítio Belo Monte, um dos vários construídos na obra, que emprega 25 mil operários e engenheiros - Lalo de Almeida/Folhapress
  • Trabalhadores jogam pingue-pongue e pebolim na área de lazer do alojamento de Canais - Lalo de Almeida/Folhapress
  • Operários jogam dominó no setor recreativo do alojamento de Canais - Lalo de Almeida/Folhapress
Os alojamentos têm dormitórios para no máximo quatro pessoas, com ar-condicionado, banheiro interno e água quente. Dezenas de quartos compõem os “condomínios”, em cada um dos quais só se entra com o crachá magnético correspondente. No pátio interno entre os condomínios, os quartos são isolados por alambrados. As opções de lazer são ver TV, ir à academia, jogar sinuca, dominó ou pebolim. Há espaço para cultos religiosos e aulas de informática. Um cinema com 200 lugares está para ser inaugurado.
De acordo com o Datafolha, 57% dos trabalhadores da usina moram nos alojamentos dos canteiros. A grande maioria aprova conforto (89% de ótimo e bom) e limpeza (84%) do local, assim como sua organização (71%) e as oportunidades de lazer (70%). Só a qualidade da alimentação divide opiniões: 45% de ótimo/bom contra 45% de regular.
Greves de trabalhadores (como a que parou toda a obra no final de novembro de 2013), protestos de índios, paralisações determinadas pela Justiça e problemas com licenças ambientais podem forçar a Norte Energia a atrasar o início da geração. Pelo contrato assinado com a União, a multa por descumprimento do prazo pode chegar a 2% do faturamento anual.
A Norte Energia ainda teria de comprar de outras empresas a energia que não entregar, ao custo diário de até R$ 1 milhão por turbina não acionada, dependendo do preço da energia na época. Esse prejuízo acabaria assumido pelos contribuintes, pois, apesar de planejado como empreendimento privado, Belo Monte no fundo é estatal (não é à toa que a Força Nacional de Segurança participa da vigilância na obra).
Em 2010, quando a Norte Energia venceu o leilão para construir Belo Monte, o grupo era pouco mais que um aglomerado de empresas médias de construção civil e energia (Bertin, Queiroz Galvão, J. Malucelli, Cetenco, Galvão Engenharia, Mendes Júnior e Serveng) com estatais lideradas pela Chesf (Companhia Hidrelétrica do São Francisco). Desde então, sua composição evoluiu para uma associação entre as estatais e fundos de pensão, que contratou para tocar a obra civil boa parte das empreiteiras perdedoras do leilão, agora reunidas no CCBM.

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